domingo, 24 de março de 2013

Câmara Lenta


     Lá vem outra vez aquela música do fim do dia, pensou um pouco enfastiada. Catarina olha o céu escurecente da cidade através da janela alta. Os brilhos que se misturam, vindos de fora e vindos de dentro num produto confuso e disfórico, ditam-lhe uma repetição por si mesma insuportável.
A música, essa, continua, longínqua mas fluída. Algo cortante. Se estivesse mais perto poderia claramente tornar-se punhal. As intenções da lâmina não são óbvias... assim, pelo sim, pelo não, Catarina mantém a música à distância. Deste modo pode ouvi-la com os olhos fechados, a testa encostada ao vidro. Apenas um ruído incómodo, sem consequências demasiado danosas, sem nenhum sentimento de ameaça. Simplesmente o longo e vicioso repetir de sons. Hoje, como todos os dias.
Não sabe bem porque se senta naquele parapeito todos os dias, à mesma hora (aquela, a do final do dia, que termina quando o último minuto da última hora solta o último segundo), se este repetir lhe traz tanto fastio e lembrança contínua de ser uma apenas e apenas finita. Se esta música a lembra sempre do que lhe falta e de quem não é.

Abre os olhos para ver se já aprendeu a ver melhor no escuro. Logo os fecha de imediato, cerrando-os ora com força. Catarina concentra-se com esforço, procurando decifrar cada nota. Ouve com atenção e consegue distinguir o som da voz da mãe que queria ter sempre junto de si enquanto ainda bebé. O som desmaiante da água que não pode beber quando tinha sede. As notas graves do pai que não pode impedir de partir O grito cortante do choro do filho que não pode abraçar. O horizonte e o braço que não alcança. Tudo o que não pode e não sabe, mas quer. Sempre o que não pode.
É este o grito, a música do fim do dia que se repete nos olhos e nos ouvidos de Catarina.

     Esta noite sente-se, mais uma vez, farta, cheia de coisa nenhuma, sufocada. A janela já não embala, só amortece o som, de outra forma punhal.
Catarina está farta, o vómito a surgir, convulsivo e compulsivo. A janela já não serve, o vidro confunde-se consigo na transparência que é dos dois. Resiste à fusão e, num ímpeto de quem quer e não quer sair da sua vida entorpecida e semi-adormecida, abre a grande janela e chega-se, ébria, à varanda. Claramente a música fica agora mais perto. Mais intensa. Perigosamente perto. Catarina sabe disso, sabe que na varanda a música não pode ser mais música. Torna-se ruído estridente e ensurdecedor. Este não poderia ouvir todos os dias, ficaria surda face à insistência.
Catarina não consegue ficar mais do que apenas alguns minutos, os tais, os da última hora. Tem que transformar o ruído monstruoso na já tão conhecida e insuportável música. Ela que venha outra vez - pensa desafiante, mas cobarde. - Mal por mal, vou morrendo devagarinho.

(Autor desconhecido)

Um comentário:

  1. Senti um arrepio ao ler este texto e senti toda a angustia que transparece nele...
    Um beijo

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