sexta-feira, 29 de novembro de 2013


Zona Interna do Pulso
ou Da Transparência - parte III

Era uma vez uma menina chamada Mariana. Não. Outra vez. Era uma vez uma mulher chamada Mariana. Mulher ainda menina. Não pelo aspecto ou aparência física, mas pelo sua eterna lupa de ver o mundo, olhando sempre os outros como adultos, maiores do que o que são realmente, a quem se pede infinitamente a aprovação impossível.
Neste dia, Mariana era mulher a passar a ferro. Mais uma noite como as outras. Mais um final de noite desgastado, empurrado e arrancado ao último fôlego de Mariana, cujas costas desejavam ardentemente uma superfície onde alongar e depois contorcer um pouco, deixando o momento de dor ceder aos poucos para uma réstia de prazer, por comparação com a tortura anterior.
A pilha de roupa aumentava por cima da máquina de lavar roupa. O desânimo no olhar. Só mais esta camisa, só mais aquelas calças. Depois poderia descansar. Sempre o depois, o eterno prazer adiado. Mas que nunca chegava, a não ser na perspectiva de um passo que seria sempre dado à frente, mas permanecia como projecto, futuro continuamente adiado.
Mariana não desgosta de passar a ferro. O automatismo da tarefa permite-lhe a oportunidade de um cenário que se abre apenas perante os seus olhos. O pensamento vagueia. E vagueia. E volta a vaguear.
Com o tempo a mulher menina começou a apagar-se, a ficar amarelecida, como uma camisa onde alguém deixou um ferro quente pousado. Não muito quente. Suportável de início, mas implacável se esquecido. Começava a fazer buraco... De tanto se ir esbatendo, começava já, bem devagarinho, a desaparecer. Ao ponto de quem entrasse naquela cozinha poder vislumbrar a janela que fica exactamente por detrás de Mariana. Ou mesmo de pensar que um ferro passava a roupa sozinho... Com um bocadinho mais de cuidado, era possível perceber que era uma mulher menina. Mas já não era possível perceber, mesmo com cuidado, se era mulher, se era menina. Antes uma mistura das duas que já não era nenhuma delas.
Estranho, pensou Mariana, não me sinto existir... O tempo passou e, como todo o tempo que passa, torturou. De tal maneira, que Mariana já não se sentia existir fisicamente, não se conseguia ver ao espelho ou mesmo lembrar-se sequer de o fazer.
Existes, corpo? - indagava ela, toda mente. Contudo, sentia-se mente ludibriada, pois não lhe encontrava as sensações, desprovida da matéria.
Foi quando, enquanto passava distraidamente a ferro um colarinho difícil de passar, a exigir precisão, mas não tanta que a mente não continuasse a percorrer caminhos sem toque, a ponta do objecto escaldante lhe tocou a pele sensível, mesmo a da parte interna do pulso, onde o bater o coração já não se fazia sentir. De imediato, a retirada da mão. Brusca no movimento, surpreendida na reacção. Mariana estarrecia, os olhos muito abertos, a mão direita que largara o ferro para massajar o esquerdo. Surpresa pela própria reacção, mas sobretudo pela sensação que já não sabia sequer decifrar. Afinal sentia... e era como algo de totalmente novo, sem memória de sensações anteriores.
Foi então que Mariana iniciou, devagar, o hábito de, nos seus intermináveis serões dedicados a passar a ferro, começar a deixar resvalar o objecto metálico quente na direcção da pele. As marcas íam ficando, mas assim ao menos não só sentia, como na realidade se via. Surgia e definia. Mariana, um vulto revelado pelas queimaduras. Que haveria de mais penoso do que não sentir?... pensava enquanto mais uma peça de roupa deslizava com ligeireza nas suas mãos marcadas.
Até que um dia, ao ligar o cabo eléctrico do ferro à tomada, preparando-se para mais uma sessão de sensações, Mariana decidiu ouvir música. Novamente os olhos abertos, a surpresa. Há quanto tempo... Desta havia memórias... As pálpebras tensas deram lugar ao relaxamento dos tecidos e o olhar tornou-se meigo e aveludado. O braço deslizou num movimento fluido e o ferro dançou por entre os vincos da roupa. Mesmo os mais teimosos deixaram de ter importância. O tempo em que se demorava em cada dobra, em cada reentrancia, em cada bolso ou intervalo entre botões, fazia com que a busca da perfeição em cada pedaço de algodão liso se tornasse exercício lúdico e ritmado, agora com banda sonora. A melodia prosseguia e, com ela, Mariana navegando por entre o fumo do vapor do ferro, os olhos semi-cerrados, o corpo colocando-se lentamente menos tenso, mais sinuoso, mais consciente da dor, mais perto dela própria, toda mente, nem menina, nem mulher. O corpo acompanha o movimento do braço que investe na roupa de forma suave e fluída.
É então que novamente num colarinho mais desafiante, o ferro se aproxima perigosamente da zona interna do pulso. O hábito, a dor tornada prazer, levam Mariana num determinado caminho. O seu braço hesita, o movimento fica suspenso por uma qualquer sensação recente, guardiã de memórias ancestrais. Mariana sabe que a memória faz toda a diferença. Sabe também que o que relembrou hoje é diferente da sensação do ferro quente na pele. É que agora Mariana pode sentir por dentro. Mariana está indecisa – a música ou o ferro...

Picasso, Woman Ironing, 1904

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